Vargas criou o ministério para
intermediar relações entre trabalhadores e empresários, função até então
do Ministério da Agricultura
Por: Rafael BarifouseDa BBC News Brasil em São Paulo
Hoje, esse ministério é responsável por elaborar diretrizes para
geração de emprego e renda, além de emitir documentos e fiscalizar as
relações trabalhistas no Brasil, investigando denúncias de trabalho
escravo e infantil e o cumprimento da legislação por parte das empresas.
Mas sua criação teve outro propósito.
Quando surgiu, em 26 de
novembro de 1930, a ideia era que a pasta fosse responsável por
intermediar as relações entre trabalhadores e empresários, até então sob
a responsabilidade do Ministério da Agricultura.
"Era uma política alinhada com o que se pensava então sobre o papel
do Estado como um mediador das relações entre grupos e indivíduos",
explica Renan Pieri, professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas
(FGV-SP) e do Insper.
"Vargas dá um golpe de mestre e assume a dianteira deste processo, estatizando estas relações."
A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi uma das
primeiras iniciativas de Vargas ao assumir o governo por meio de um
golpe, após a Revolução de 1930, que culminou com a deposição do então
presidente Washington Luís (1869-1957) e o impedimento de que seu
sucessor, Júlio Prestes (1882-1946), assumisse o cargo, dando fim à
República Velha.
A pasta foi batizada de "ministério da Revolução"
por Lindolfo Collor (1890-1942), seu primeiro titular e avô do
ex-presidente Fernando Collor de Melo.
"Essa revolução se refere a
uma ruptura com a velha oligarquia agrária por meio da criação de um
Estado positivista, a instauração de um modelo legal e burocrático que
passa a organizar as relações sociais por meio do monopólio da força
através de um sistema normativo", diz Marcelo Nerling, professor do
curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo
(USP).
"O Estado passa a ser o protagonista, baseado na crença de
que é possível mudar a realidade social por meio de normas criadas de
cima para baixo."
Nerling explica que não havia na época no
Brasil um Estado como conhecemos hoje. "A administração pública só
começa a se organizar a partir da década de 1930. Até então, as
principais forças do país estavam concentradas nos municípios,
comandados por coronéis. Era um modelo descentralizado e
patrimonialista, em que não se separava o público do privado."
Qual foi o impacto da criação do Ministério do Trabalho?
Uma
das primeiras medidas do novo ministério neste sentido foi criar uma
nova regulamentação da atividade sindical, com critérios para a criação
de sindicatos.
Entre as novas regras, estava haver uma única
representação para profissionais de uma categoria dentro de uma mesma
região, um mínimo de 30 membros, com ao menos dois terços de
brasileiros, veto a qualquer manifestação política e ideológica,
punições a empresários que impedissem a sindicalização dos trabalhadores
e a aprovação da entidade pelo ministério - até então, não se dependia
de autorização do governo.
O ministro Collor declarava na época
que enxergava os sindicatos como uma forma de mediar os conflitos e
tinha como objetivo trazer estas organizações para a órbita do novo
ministério para que passassem a ser controladas pelo Estado.
"Vargas
queria que os sindicatos se tornassem satélites do governo, politizando
as relações entre empresas e trabalhadores", diz Pieri.
Na época,
o Brasil ainda era um país extremamente rural, mas havia uma indústria
nascente, que ganha força em reação ao crescente impedimento de importar
produtos da Europa a partir da Primeira Guerra Mundial.
Ao mesmo
tempo, a abolição da escravatura lançou um grande contigente de mão de
obra ao mercado enquanto houve simultaneamente uma chegada massiva de
imigrantes a partir do fim do século 19, facilitada pela Constituição de
1891, que, ao mesmo tempo, consagrou o direito de livre associação.
Surge,
assim, uma classe de trabalhadores urbanos e de profissionais liberais,
e se formam os primeiros movimentos sindicais, que foram reconhecidos e
regulamentados em lei ao longo da primeira década do século 20,
primeiro para os trabalhadores agrícolas e, depois, para os urbanos.
"Com
a formação de uma economia de mercado, foi natural a formação de
sindicatos especializados para representar os trabalhadores", diz Pieri.
Ao
mesmo tempo, nas questões relativas a direitos, o regime de Vargas
buscava atender reivindicações históricas dos trabalhadores, alinhado
com a ideia da outorga dos direitos trabalhistas pelo Estado.
"Vargas
havia acompanhado o que ocorreu na Rússia a partir de 1917 com a
revolução, quando, em meio ao conflito entre capital e trabalho, o
proletariado assumiu o poder. Então, ele, que era um capitalista, sabia
aonde isso poderia acabar", diz Nerling.
"Vargas sabia que, se os
trabalhadores fizessem greve atrás de greve para reivindicar direitos,
poderiam quebrar o capital. Ele opta por chamar para si a
responsabilidade de regular estas relações, cria leis que vinculam os
cidadãos. Entrega os anéis para não perder os dedos."
O que mudou a cada Constituição?
Ministério criou a carteira profissional, precursora da atual carteira de trabalho e previdência social
O
ministério teve sob Vargas uma atividade legislativa intensa. Foram
lançadas medidas importantes, como a criação da carteira profissional
(precursora da atual carteira de trabalho e previdência social), a
regulamentação do trabalho feminino e infantil e o estabelecimento de
juntas de conciliação de conflitos entre patrões e empregados, que seria
um embrião da Justiça do Trabalho, criada pela Constituição de 1934 e
que passaria a atuar a partir de 1941.
Também se destaca a criação dos Institutos de
Aposentadoria e Pensões, que mudaram o sistema previdenciário do país.
Ainda seriam instituídos o salário mínimo, a jornada de trabalho de oito
horas e o descanso semanal, as férias remuneradas e a indenização por
dispensa sem justa causa.
Uma das iniciativas de maior peso foi a
instituição em 1943 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que
unificou as leis trabalhistas existentes até então. O dia em que recebeu
a sanção presidencial, 1º de maio, passaria a ser o Dia do Trabalho,
feriado celebrado até hoje em todo o país.
As décadas após a primeira era Vargas foram marcadas por diversas mudanças nas leis e direitos trabalhistas.
Em
1946, a Assembleia Constituinte convocada após o fim da ditadura,
acrescentou novos pontos como o direito à greve e o descanso remunerado
aos domingos e feriados.
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) surge em 1966, já durante o regime militar, para proteger o
trabalhador demitido sem justa causa com uma conta aberta em seu nome,
vinculada a seu contrato de trabalho, na qual são depositados
mensalmente o correspondente a 8% do salário.
A Constituição de
1967 instituiu a aplicação da legislação trabalhista a empregados
temporários, a proibição de greve em serviços públicos e atividades
essenciais e o direito à participação do trabalhador no lucro das
empresas, entre outras medidas.
A partir da Constituição de 1988,
passam a ser previstos medidas de proteção contra demissões sem justa
causa, o piso salarial, a licença maternidade e paternidade, o veto à
redução do salário, a limitação da jornada de trabalho a oito horas
diárias e 44 horas semanais e proibição de qualquer tipo de
discriminação quanto a salário e critérios de admissão do trabalhador
portador de deficiência. Também foi criado o Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT), destinado em parte ao custeio do Programa de Seguro
Desemprego.
"São políticas criadas e geridas dentro do Ministério
do Trabalho, por ele oferecer um corpo técnico e orçamento dentro do
governo para discutir essas relações, mas que têm muito mais a ver com o
ambiente político de cada época, a pressão popular por mudanças e cada
governo do que com o órgão em si", avalia Pieri.
O economista
destaca que a partir dos anos 1990, a pasta assume um papel cada vez
mais de fiscalização do cumprimento das normas e leis trabalhistas e na
gestão de recursos como os do FGTS e do FAT.
E se o ministério acabar?
Se sua extinção se confirmar, não será a primeira vez que o Ministério do Trabalho será fundido com outras áreas.
Ao
surgir em 1930, a pasta também era responsável por indústria e
comércio. Em 1960, passa ser Ministério do Trabalho e Previdência
Social. Torna-se puramente Ministério do Trabalho em 1974. Em 1990,
volta a incorporar a Previdência.
Dois anos depois, passa a ser o Ministério do
Trabalho e da Administração Federal e, em 1999, do Trabalho e Emprego.
Em 2015, vira mais uma vez Ministério do Trabalho e Previdência Social,
até, em 2016, tornar-se novamente apenas Ministério do Trabalho.
Ao
tratar do tema, Bolsonaro já declarou em entrevistas que o trabalhador
terá de"decidir entre menos direito e emprego ou todos os direitos e
desemprego". "Os encargos trabalhistas fazem com que se tenha
aproximadamente 50 milhões de trabalhadores brasileiros na
informalidade", disse à rádio Jovem Pan.
Pieri avalia que, com o
anúncio do fim da pasta, surge uma "incerteza jurídica" sobre quem
exercerá os papéis que hoje cabem ao ministério. "Isso é uma questão
mais importante do que se terá ou não um status de ministério, que é
algo secundário."
Nerling discorda e acredita que a transformação da pasta em uma secretaria sinaliza quais serão as prioridades do novo governo.
"Isso
representa uma mudança de paradigma. Quando você dá a uma área status
de ministério, diz que as políticas públicas nesta área serão
priorizadas. Em um governo, a tomada de decisões ocorre em camadas, e a
alteração de status precariza o cumprimento das competências que hoje
cabem ao ministério, retira força e abala a eficácia de suas políticas",
diz Nerling.
"Ao dizer que se deve escolher entre trabalho e
direitos, o presidente eleito diz que os direitos são um problema, mas
isso só é um problema para o capital. Se antes o Estado se posicionava
para garantir os direitos dos trabalhadores, agora, ele pesa a mão para o
outro lado e passa a priorizar o capital."
Por sua vez, Pieri
destaca que, com a Reforma Trabalhista, passou a prevalecer sobre as
leis trabalhistas a negociação entre sindicatos e empresas.
"O fim
do ministério pode sinalizar um novo tempo em que o Estado não mais
intermedia a relação entre capital e trabalho. Isso teria no futuro o
efeito de despolitizar os sindicatos", diz Pieri.
"Será
necessário entender o que o presidente quis dizer com o fim do
ministério. Significa um relaxamento da fiscalização e que o governo não
está mais pensando nestes problemas ou apenas uma mudança burocrática?
Bolsonaro não pode dar uma canetada e tirar direitos, mas temos de
debater se alguns benefícios previstos na lei de fato beneficiam o
trabalhador."